A mudança da política 

Por Antonio Lavareda* – 06/08/2024 00h06  – O GLOBO – Artigos

Se um orador em qualquer auditório perguntar à plateia se acha necessário mudar a política, quase todos os braços se levantarão. Da esquerda, centro, e direita. Os dois ou três reticentes serão certamente de cientistas políticos “nefelibatas”, como diria FHC, que de pronto arguirão o óbvio – essa insatisfação é generalizada no mundo. O que não deveria, contudo, fazê-los desconhecer o diferencial de intensidade dos problemas daqui, e ignorar os sinais do abismo à frente. 

As disfunções do nosso sistema político são variadas. Por hora foquemos de um lado no “presidencialismo esgotado”, e de outro na “representação sem fidúcia”, para os quais há diversos indicadores, mas por economia de espaço abordo apenas dois.

Abstraindo-se qualquer etiologia, examinemos o que denomino “taxa de sinistralidade” dos presidentes eleitos na 4a e na 6a Repúblicas – a do Pós Guerra e a atual -, deixando-se de lado as demais por terem escassa ou nenhuma conformação democrática. E apenas dos titulares, valendo para a análise o período dos mandatos e eventuais ocorrências dele derivadas. Na primeira fase, dos quatro presidentes dois exercícios foram encerrados dramaticamente: Getúlio (1954) suicidou-se, e Jânio (1961) renunciou. 50%de sinistralidade. Na Nova República, independente das reeleições, foram até agora cinco personagens, dos quais quatro amargaram problemas graves. Collor sofreu impeachment (1992); Dilma também (2016); Lula foi preso (2018) e declarado inelegível (o que seria depois revertido); e Bolsonaro foi tornado inelegível (2023) sem ainda ter sido preso. Quatro em cinco. A taxa sobe para 80%. A que montante queremos chegar? 

Quanto à representação sem fidúcia, para prová-la basta um número. Axiomaticamente, confiança supõe conhecimento, mínimo que seja. Inexiste, se eu não lembro sequer do representante que escolhi. Em setembro de 2022, menos de um ano depois da eleição dos atuais deputados federais, perguntados pelo IPEC se lembravam o nome daquele/a em quem haviam votado, apenas 29% disseram que sim. E é legítimo supor que esse baixíssimo registro ainda diminuiria caso fosse indagado e conferido o candidato sufragado. 

Sendo inequívoco o impacto da governança que um sistema político propicia sobre a performance da respectiva sociedade, os dados que O Globo trouxe em editorial (23/6/2024) são um veredito condenatório. Calculou o quanto cresceu ao ano a renda per capita entre 2010 e 2023 – período interessante porque por ele passaram governos de todo o espectro ideológico – chegando à cifra de 0,2 porcento. E projetou o momento em que dobraríamos o padrão de vida, imprescindível para arrancar o país à pobreza que aflige grande parte da população. A conclusão, estarrecedora, é que isso se daria no distante ano de 2368. Ou seja, alcançando os nossos tataranetos. 

Alguém lembrará que até aqui o Judiciário não foi citado. É verdade e é deliberado, independente da obviedade de que esse poder também precisa mudar. Presidentes escolhem os juízes da Suprema Corte, que são confirmados ou não pelo Senado. Não é mudando-se o Judiciário que se muda o padrão de governação e de representação. O roteiro é o inverso. 

E quais as mudanças possíveis? Quanto ao regime, um sem número de vozes já diagnosticaram a inevitabilidade de avançarmos na direção de um sistema misto. Mais francês ou mais português, o que seja1. Entre nós, na ausência de um monarca, é enraizada a idéia da legitimação do poder pela escolha direta. Lá atrás, isso justificou as duas primeiras eleições nacionais – para a Regência Una (1835 e 1838). No século passado, essa preferência seria confirmada nos plebiscitos de 1963 e 19932. Não retrocedendo a captura do orçamento pelo parlamento, caberá adotar a convivência entre um presidente chefe de Estado e um chefe de Governo escolhido pelo Congresso3. Se é expressivo o agregado de líderes políticos e de intelectuais que apostam nisso, diminui bastante o daqueles que se ocupam do esforço de superação da representação sem fidúcia, que exige mudança no sistema eleitoral. Mas não será possível termos o primeiro ministro e o gabinete parlamentar toleráveis aos olhos da sociedade com os partidos “hidropônicos” que temos hoje4

*Antonio Lavareda, presidente do Conselho Científico do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe), é professor colaborador da pós-graduação em ciência política da UFPE e presidente de honra da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais. Este artigo é uma síntese da palestra na mesa “Reforma política” no 14º Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política ABCP/CDESS.

Notas 

  1. O presidente francês é mais empoderado. Tem considerável poder executivo e desempenha papel decisivo na política externa e na defesa. É comandante chefe das FFAA, pode emitir Decretos e convocar Referendos, e eventualmente preside o Conselho de Ministros. O presidente português, também eleito diretamente, atua consoante um papel mais simbólico e “moderador”, sendo uma espécie de árbitro em crises políticas. É menos influente no dia a dia, independente da composição do governo. Conforme o artigo. 133 da CP, ele é o comandante supremo das forças armadas, preside o Conselho de Estado, nomeia o primeiro ministro levando em consideração o resultado das urnas , nomeia os representantes da República para as regiões autônomas, dirige Mensagens à Assembleia, e pode dissolver a Assembleia da República, ouvidos os partidos e o Conselho de Estado. Mas mesmo limitado, está longe de ser um poder irrelevante. No final do ano passado, Marcelo Rebelo, quando o 1o ministro Antonio Costa renunciou, na sequência de uma operação do Ministério Público que depois se mostraria despropositada, ele convocou eleições, que se deram em março desse ano e mudaram a face da Assembleia. A AD assumiu o governo, e o CHEGA multiplicou quatro vezes sua bancada. De 12 para 50 deputados. 
  2. a) Após a partida de D. Pedro I em 1831, deixando para trás um herdeiro de apenas 5 anos, o modelo que se buscou para manter a monarquia foi a Regência Trina. Porém, nos anos seguintes ela se mostraria inviável. O que levou ao Ato Adicional de 1834, alterando a Carta de 1824, que instituiria o mando unipessoal, a Regência Una. E para legitimar a designação desse gestor importou-se a fórmula americana. O Regente seria escolhido através de eleição nacional com voto secreto e mandato de quatro anos. Em 1835 e 1838 tivemos, assim, nossas duas primeiras eleições “presidenciais”. Com poucos eleitores é verdade, mas que não deixaram de ser algo competitivas, o que naqueles tempos até causa espécie. Seus resultados mostram que os vitoriosos – O Padre Feijó na primeira, e Araújo Lima na segunda – tiveram vitórias mais apertadas que a maioria dos presidentes eleitos na Primeira República. b) Lembrando que 1963 foi um Referendo retificador. O parlamentarismo fora introduzido em 1961 como um artifício de negociação para dar aos chefes militares golpistas uma saída, um recuo não de todo desmoralizante. Eles haviam se rebelado contra a posse de Goulart após a renuncia de Jânio, mas a reação a partir do RGS governado por Leonel Brizola havia atraído setores militares, e vendo as FFAA divididas eles preferiram recuar. A ideia do parlamentarismo foi a saída. Dois anos depois a população restaurou o presidencialismo por 77%. Em 1993, a consulta cumpria previsão da Constituição de 1988. Dessa vez, optaram pelo presidencialismo 55% dos votantes.
  3. O valor das emendas foi multiplicado por mais de quatro vezes nos últimos oito anos. Corresponderam, segundo Bruno Carazza, no governo Bolsonaro na média a quase 30% do total de despesas discricionárias do governo federal. Em 2023 esse número recuou para 24%. E este ano pode crescer de novo. O pagamento de grande parte delas se tornou obrigatório. Para seduzir os congressistas é necessário liberar aquelas Emendas extras. E quem controla na prática o processo de liberação são os presidentes das duas casas, numa relação direta com os parlamentares, flanqueando até as lideranças das bancadas. MPs não podem mais ser reeditadas sem limites. Com frequência são alteradas ou rejeitadas. Os vetos presidenciais passaram a trancar a pauta quando não votados. E cada vez mais são derrubados. O Executivo perdeu parte substancial dos instrumentos de governação que detinha. O Congresso nas crises amplificou seu poder. Avançou substancialmente sobre o orçamento. Ressalte-se, sem qualquer traço de accountability. E sem paralelo com outros países. As emendas pork barrel dos congressistas americanos para suas demandas paroquiais, além de estigmatizadas (passaram 11 anos suspensas) corresponderam apenas a 1,5% do montante de investimentos discricionários do governo Biden no ano passado (2023). Levantamento da Transparência Brasil (CBN, 29/07/2023) revelou que menos de 1% das Emendas PIX informaram o destino e a finalidade. Cada deputado federal tem nas mãos neste ano, em média 58 milhões, uma quantia maior do que a recebida por 79% dos municípios brasileiros, consideradas todas as transferências da União (O Globo, 18/12/2023). Mas sempre haverá quem veja virtudes insuspeitas nos aspectos digamos “macunaímicos” do nosso sistema político.
  4. Algumas mudanças que assistimos na Reforma de 2017 conseguiram reduzir ou impedir a proliferação de partidos com assento no parlamento. O fim das coligações nas proporcionais ajudou nisso. A cláusula de barreira, também. As Federações, nem tanto. Mas por acaso essas medidas melhoraram a accountability dos eleitos? Tem quase 100 anos a adoção do modelo atual. Proporcional com lista aberta, desorganizada. É singular se levarmos em conta o tamanho dos distritos utilizados: os estados e o Distrito Federal. Na maioria dos países que empregam o voto proporcional, as listas são pré ordenadas. Os poucos que não o fazem, como lembra Jairo Nicolau, têm eleitorados muito menores que o nosso ( Polônia, Finlândia, Chile, Dinamarca) e operam com distritos reduzidos. O custo da competição no nosso modelo é muito elevado. A disputa maior se dá internamente. Mulheres e negros, com meras cotas de financiamento, são sub representados. Em SP, na eleição de 2022, um eleitor teve que escolher um nome entre 1540 candidatos a deputado federal. Um outro entre 2059 candidatos a deputado estadual. E em 2020, um eleitor da capital foi desafiado a escolher seu vereador entre 2002 candidatos. Resultado: ininteligibilidade total. Memória reduzida dos nomes escolhidos. Opacidade do sistema . Distância dos cidadãos. Baixa ou baixíssima legitimidade. Representação individualizada. Partidos hidropônicos, na sua maioria sem raizes na sociedade, desprovidos de significado aos olhos dos cidadãos. O sistema faz da Câmara Federal um agregado de “513 empreendedores individuais”. Imagine-se a indicação de um Chefe de Governo, de um lado desconhecido do grande público, e de outro representando um partido que tenha escassa preferência dos eleitores. Que sentimentos essa combinação produziria na sociedade? Parece claro que temos um presidencialismo esgotado, e que talvez a mudança do sistema surja como inevitável em algum ponto à frente. Mas ela exigirá, prévia ou simultâneamente, a reorganização da representação. Que de resto deveria ser da mesma forma uma preocupação dos que acreditam na manutenção do modelo atual, pois ela é indispensável para fortalecer o fragilizado padrão de governação vigente.


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