Por Mônica Gigliano – Valor Econômico (22/06/2018)
Trinta e três anos depois de o último presidente-general, João Baptista Figueiredo (1919-1999), sair do Palácio do Planalto pela porta dos fundos pedindo que o esquecessem e se recusando a passar a faixa a José Sarney, seu sucessor civil, os militares ganharam nova influência e passaram a navegar por uma onda de popularidade. Uma pesquisa de opinião encomendada pelo Exército Brasileiro e apresentada ao Alto Comando, em abril, captou o fenômeno: 80,6% dos entrevistados disseram confiar na instituição e consideraram os integrantes das Forças Armadas os cidadãos mais capacitados para combater a corrupção e a violência, duas das maiores mazelas nacionais. É nesse ambiente que surgem mais de 80 pré-candidaturas de militares na reserva, que se organizam para disputar as eleições majoritárias e proporcionais em outubro, contra menos de 50 candidaturas em 2014. Outra diferença neste ano está na graduação, mais alta. São generais, majores, capitães, entre outros, que pretendem entrar para a vida na política. "A conjuntura abriu espaço para esses militares. Qual vai ser a ocupação desse espaço, ainda é muito cedo para saber. Mas é evidente que, neste momento, a sociedade os vê como uma tábua de salvação", afirma o sociólogo Antonio Lavareda.
A última pesquisa Datafolha sinaliza, ainda que com números bem diferentes, uma convergência para o levantamento feito para o Exército. As Forças Armadas são a instituição em que a população deposita mais confiança, embora o índice tenha apresentado uma queda de cinco pontos percentuais entre as duas últimas sondagens do instituto. Em abril era de 43% e, agora, está em 37%. Em contrapartida, os índices mais altos de desaprovação e desconfiança continuam com os partidos políticos (68%), o Congresso (67%) e a Presidência (64%). O presidente Michel Temer (MDB) ostenta 82% de desaprovação popular e atinge o patamar mais baixo para um chefe da nação, desde a redemocratização.
"A influência dos militares diminuiu consideravelmente no período democrático e ela está sendo recuperada agora", diz o historiador Sergio Murillo Pinto, autor de "Exército e Política no Brasil – Origem e Transformação das Intervenções Militares (1831-1937)", da Editora FGV.
Pesquisadores e acadêmicos ligados à defesa dos direitos humanos e a setores sociais mais progressistas veem com ressalvas o pensamento conservador de boa parte desses postulantes. "Não vejo com simpatia essas candidaturas. Os problemas do Brasil são de natureza civil e creio que a formação militar, que se baseia na hierarquia, na rigidez moral, dificulta a ação dessas pessoas", diz Sérgio Adorno, coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência da USP. "A história do regime militar durante os anos de ditadura não é de boa memória."
O cenário tem mexido no xadrez das campanhas. O general João Camilo Pires de Campos, ex-comandante militar do Sudeste, por exemplo, entrou para o programa presidencial de Geraldo Alckmin (PSDB) para fazer a parte de Segurança Pública. Ele se soma ao coronel da reserva da PM de São Paulo José Vicente da Silva, que foi secretário Nacional de Segurança Pública no governo de Fernando Henrique Cardoso. Analistas de opinião viram nos convites do tucano uma tentativa de agradar ao eleitorado que apoia a candidatura do deputado federal e ex-militar Jair Bolsonaro (PSL). Enquanto Alckmin patina nos 7%, Bolsonaro mantém a liderança da corrida presidencial, com 19% das preferências, nos cenários em que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está ausente.
"Bolsonaro pode ter começado a crescer com o apoio dos militares. Ele abriu um caminho que está sendo trilhado por companheiros militares. Mas, hoje, sua base transcende, e muito, a corporação", diz o deputado Onix Lorenzoni (DEM-RS), que atua como um dos coordenadores da campanha do pré-candidato. O cientista político José Álvaro Moisés, professor da USP, vê nas candidaturas de Bolsonaro e de outros militares os reflexos de um governo federal que está se "esfarinhando". "Bolsonaro é um político que um dia foi capitão do Exército. Aproveita-se dessa situação toda, mas é um político conservador, reacionário e autoritário, cujos defeitos são maiores que suas qualidades. Está fora do seu tempo. Não é um político do século XXI", afirma.
Para Lorenzoni, Bolsonaro é um político com "raras qualidades" e, até agora, o "único em condições de fazer frente ao PT e essa tirania do politicamente correto". No entanto, sua trajetória militar associada à conjuntura desfavorável aos políticos tradicionais são vistas como polo de atração para candidaturas com as mesmas raízes. Entre os postulantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, mais de 50 devem concorrer pelo mesmo partido dele, o PSL.
As demais legendas que têm sido procuradas são PSDB, PSC, PR, PEN, PRP, PRTB, Novo, Patriotas, DEM, PHS, PROS, PTB e PSD. Até o momento, apenas o Acre não tem representante no grupo. "O crescimento da preferência por Bolsonaro foi decisivo para que eu resolvesse me candidatar novamente", diz Sergio Roberto Peternelli, general da reserva que vai disputar uma vaga de deputado federal pelo PSL. "Não vejo nenhum mal nas candidaturas de militares. Pelo contrário, e talvez eu seja criticado por isso, mas acho que essas candidaturas são tranquilizadoras. São um sinal de incorporação à vida democrática. O que é preciso deixar sempre claro é que não
são candidatos das Forças Armadas", observa Moisés.
Desde que as candidaturas de militares começaram a ganhar espaço, Peternelli, de 63 anos, casado e morador de São Paulo, tornou-se uma espécie de organizador informal do grupo. É ele quem contabiliza a chegada dos novos pré-candidatos, faz contatos e estimula a adesão a bandeiras comuns, como a defesa da propriedade privada, as reformas constitucionais e o combate à corrupção. Para senador, Peternelli vai apoiar o deputado Major Olímpio (PSL-SP) e aguardará por uma decisão do partido sobre a candidatura a governador do Estado.
Sem recursos para financiar as campanhas, o general da reserva tem estimulado o uso de "crowdfunding" e de doações privadas. "O momento favorece nossas candidaturas. A população acredita em nossa formação e na correção de nosso caráter", afirma Peternelli.
Mais do que acreditar na capacidade dos militares, Marieta de Moraes Ferreira, doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF), observa que momentos específicos da história reúnem as condições que favorecem essa categoria de postulantes. "As candidaturas de militares no Brasil têm sempre muita relação com crises, com a desorganização da sociedade civil, dos partidos e até das instituições", diz Marieta, que também é diretora-executiva da Editora FGV.
É quase um consenso entre historiadores e cientistas sociais que a atual instabilidade político-econômica do país é um terreno fértil para o crescimento da influência militar. "Eles são uma instituição cujos integrantes são vistos como pessoas abnegadas e voltadas para o bem da pátria. Ninguém lembraria de chamar os militares para o jogo político se tudo estivesse bem. Mas nada está bem", afirma Lavareda. "O problema é que esse militar, quando se torna candidato, se iguala aos outros. Ninguém sabe o que pode acontecer nessa trajetória em que ele corre o risco de terminar com a farda desbotada."
Há menos de um mês, durante um almoço de militares da reserva em Porto Alegre, o general Hamilton Mourão, que já chefiou o Comando Militar Sul (CMS), disse: "Não vejo que a solução para o país seja aquela intervenção militar clássica de afastar todos do poder, e a partir daí as Forças Armadas tomarem conta do país. O país não tem que ser tutelado pelas Forças Armadas. O que as Forças Armadas têm que fazer é impedir
que ocorra o caos". Mourão se filiou ao PRTB e pode ser o vice na chapa de Bolsonaro. Ele ficou conhecido nacionalmente por suas duras e ameaçadoras declarações a favor da intervenção das Forças Armadas. No entanto, tem buscado abrandar suas declarações. Às vésperas de tomar posse como presidente do Clube Militar, dedica boa parte de sua agenda a divulgar as candidaturas de militares.
"Faço isso porque sei que são pessoas com valores e princípios. É gente que conhece os problemas brasileiros e vai estar lá representando uma parcela significativa da população em condição de participar desse processo de reforma e refundação do nosso país, que é mais do que necessário", diz. Além de o Brasil passar por um período já relativamente longo de instabilidade política e social, agravada por episódios pontuais como a greve dos caminhoneiros que parou o país, Lavareda argumenta que a fragilidade de Temer estimula o uso e a visibilidade das Forças Armadas. "É natural que Temer se ampare neles. Não que ele goste, mas não tem outra saída", diz ele.
Entre 2010 e 2017, a medida que permite as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) foi acionada 29 vezes. Desse total, segundo o Exército Brasileiro, dez ocorreram no governo Temer. A GLO é usada nos casos em que há o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública, em graves situações de perturbação da ordem. Reguladas pela Constituição em seu artigo 142, pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, as operações de GLO concedem provisoriamente aos militares a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade.
Temer teve de escolher entre tentar votar a reforma da Previdência – já com chances reduzidas de ser aprovada – e conter a situação da segurança no Rio de Janeiro. Optou pela segurança e decretou intervenção no Estado governado por Luiz Fernando Pezão (MDB), criando um poder paralelo entregue ao interventor, general de Exército Walter Souza Braga Netto.
"É muito provável que a visibilidade dos militares nessas operações de segurança, de combate ao crime organizado, sejam os grandes apelos dessas candidaturas", afirma o ministro da Defesa, general do Exército na reserva Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar a assumir o comando da pasta desde 1999, quando ela foi criada no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Divulgado há poucos dias, o "Atlas da Violência de 2018", produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dá uma dimensão do tamanho desse apelo. Em 2016, os 62.517 assassinatos cometidos no país, pela primeira vez na história, superaram a casa dos 60 mil em um ano. "A população tem o direito de querer que resolvam esse e os demais problemas. Mas é só mostrar o resultado dessas intervenções que fica claro que o crime organizado não se desmonta com tanques", diz Paulo Sérgio Pinheiro, ministro de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique.
Em sua opinião, uma parte da responsabilidade pelo pensamento de que militares podem resolver os complexos problemas brasileiros é do governo federal. "As concessões que Temer vem fazendo ao Poder Militar significam um extraordinário retrocesso", diz Pinheiro, que se refere à lei que tirou da Justiça Civil e passou para a Militar a responsabilidade de julgar homicídios cometidos por membros das Forças Armadas nas operações de GLO. "Inverteu a ordem e criou a submissão aos militares".
"A incompetência, a conivência e a irresponsabilidade dos órgãos de segurança nos levaram a esta situação", afirma o general de Exército da reserva Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, candidato pelo PSDB ao governo estadual. De acordo com dados do Sistema Nacional de Segurança (SNC), o Ceará registrou 5.134 assassinatos, em 2017, e se tornou a 7a região metropolitana mais violenta do mundo, segundo o ranking da ONG mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal. "Vamos tirar o oxigênio do crime, que é a droga", diz o general.
Sua candidatura nasceu pelas mãos do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), ex- presidente do partido, e por uma indicação de outro tucano, o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto, que o conheceu quando ele foi o comandante militar da Amazônia. "Convivi com ambos. Mas confesso que fiquei surpreso, em um primeiro momento, com a ideia. Depois, conversei com minha família, eles concordaram e eu aceitei. Acho que, de certa maneira, devo isso ao meu Estado e ao país que custeou minha formação", diz.
A transição entre a vida militar e a política não tem sido fácil. Em pouco mais de um mês de pré-campanha, afirma que se sente pouco à vontade e não vê muita utilidade nas caminhadas e eventos similares. "Não é do meu temperamento e, em alguns momentos, me sinto até meio ridículo", afirma.
Em sua opinião, essas caminhadas não seriam necessárias se a política fosse levada mais a sério no Brasil. "Isso é artificial. Você sai por aí, apertando a mão, prometendo mundos e fundos e depois desaparece. Não gosto disso", afirma. Mesmo não gostando, ele tem visitado e andando pelas ruas das cidades no Estado e sabe que não será fácil derrotar a coligação com mais de 20 partidos que ampara seu adversário Camilo Santana (PT), que tem o apoio de Cid Gomes e do irmão, Ciro, pré-candidato à Presidência da República pelo PDT.
No Distrito Federal, o general de divisão da reserva Paulo Chagas anunciou sua candidatura ao governo pelo PRP. No Rio Grande do Norte, o general Eliéser Girão Monteiro, ainda decide entre o governo ou uma vaga na Câmara dos Deputados pelo PRP. Desde que a eleição indireta de Tancredo Neves (1910-1985) pelo Colégio Eleitoral encerrou o ciclo de generais-presidentes que comandaram o país com o golpe militar de 1964, não se via um fenômeno igual no Brasil. E não foram apenas as circunstâncias desse momento ou mesmo a corrupção na política que abriram esse espaço aos militares. A própria evolução das Forças Armadas permitiu essas candidaturas. "Hoje os militares têm consenso de que não há via pelo autoritarismo para resolver os problemas do Brasil. Com exceções, como em
todos os grupos, ninguém cogita ou quer assumir o poder", diz um oficial com assento no Alto Comando das Forças Armadas.
Além de afirmarem que não há espaço para o autoritarismo, muitos desses oficiais da ativa ponderam que, neste momento, sequer haveria um candidato. Isso porque, apesar da popularidade e da simpatia pública, a candidatura de Bolsonaro está longe de ser uma unanimidade. O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, segundo pessoas próximas, tem aceitado a candidatura, ainda que sem grande
entusiasmo, porque não há outros nomes para substituí-lo.
Mesmo assim, Villas Bôas, ativo usuário das mídias sociais – pelas quais costuma transmitir sua opinião -, não pretende deixar a corporação alheia à disputa eleitoral. Anunciou que enviará documento com sugestões para a segurança pública e convidou todos os candidatos que quiserem a discutir suas ideias com os oficiais. A participação de militares na política brasileira é tão antiga quanto a República, proclamada em 1889 pelo marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892), quando ele assumiu a chefia do governo provisório. Driblando a primeira constituição republicana que estabelecia eleição direta, Deodoro foi escolhido pelo Congresso
Nacional, tendo como vice Floriano Peixoto (1839-1895), também militar, e que viria a substituir o presidente em 1891. O exemplo clássico foi em 1945, quando, após o golpe militar que depôs o então presidente Getúlio Vargas (1882-1954), dois dos quatro candidatos que disputaram a eleição presidencial eram militares – o brigadeiro Eduardo Gomes (UDN) e o general Eurico Dutra (PSD), que venceu o pleito. "Os militares nunca deixaram de estar presentes na vida política nacional, seja pelo voto, seja pela ditadura, como em 64. O período mais longo que o Brasil vive sem a influência dos militares é o da redemocratização, que começou em 1985 e segue até hoje", afirma Marieta.
A diferença entre o passado e o presente está no fato de que, segundo os pesquisadores, não há lideranças militares como já houve antigamente. Isso se deve à última ditadura militar. Os comandantes do regime militar, assim como podaram os direitos dos civis, também trataram de garantir sua permanência evitando o risco de um contragolpe.
Foi o marechal Castelo Branco (1900-1967), o primeiro presidente da ditadura, quem providenciou uma reforma nas Forças Armadas, criando a chamada expulsória: a
partir dos 70 anos, os militares passam à reserva automaticamente, nenhum oficial pode ser general por mais de 12 anos, e anualmente um quarto desses quadros devem
ser renovados.
"A atividade militar no Brasil se confunde com a própria nacionalidade. Talvez esteja chamando atenção o envolvimento de militares na política partidária. Mas Forças Armadas são parte da política. O Exército é um dos instrumentos da política, sem ser partidário", diz Muniz Costa. Em sua opinião, a população vê nos militares, neste momento, um reflexo dela mesma: cidadãos que pagam impostos e pouco ou nada recebem em troca.
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