EDITORIAL DO LE MONDE – Publicado na edição deste sábado (23/4)

Uma vitória de Marine Le Pen no segundo turno abriria uma guinada irremediável na França para um modelo marcado pelo clanismo, isolamento e violência, sem dar respostas às crises climáticas, sociais e geopolíticas, alerta o diretor do “Le Monde”. Jerônimo Fenoglio.
Nesses momentos finais da campanha presidencial, o maior erro seria se distrair com as últimas pesquisas do pré-segundo turno e as primeiras manobras eleitorais depois. Entre os dois, há uma votação, domingo 24 de abril, e isso determinará tanto quem vai liderar a França nos próximos cinco anos, o quadro republicano dos debates que vamos travar dentro da nossa democracia, o rosto que vai querer apresentar ao mundo ao nosso redor. Esta votação determinará também as formas de responder à guerra que assola o nosso continente, às crises geopolíticas e sociais que se avolumam, à catástrofe climática que se desenha. A magnitude dessas questões proíbe qualquer forma de relativização das próximas eleições.
No domingo, haverá apenas uma maneira de ajudar a impedir que a candidata de extrema-direita Marine Le Pen chegue ao poder: é votar em seu oponente, Emmanuel Macron, sejam quais forem os erros que cometeu em seu primeiro mandato. quaisquer que sejam as queixas que alguém possa ter contra sua política, qualquer que seja sua responsabilidade pela presença do Rally Nacional (RN) nesta segunda rodada. Nem o voto em branco nem a abstenção servirão para preservar nosso país do irremediável.
Para descrever o que poderia acontecer se Marine Le Pen se tornasse Presidente da República, a comparação com a Hungria de sua inspiração, o primeiro-ministro Viktor Orban, tem sido frequentemente usada. De fato, a erosão da liberdade de imprensa, o rebaixamento do estado de direito, o enfraquecimento das instituições estariam na ordem do dia. Mas o paralelo com um país de 10 milhões de habitantes, quaisquer que sejam suas qualidades, é muito insuficiente para descrever a explosão global que constituiria a inclinação de nossa nação para o lado do iliberalismo. A França, potência nuclear com assento no Conselho de Segurança da ONU, pilar da construção europeia, não é bem a Hungria.
Complacência
Para medir os riscos incorridos, devemos olhar um pouco mais a leste do continente, para a Rússia de Vladimir Putin, à qual a senhora Le Pen se vinculou por sua admiração proclamada em muitas ocasiões e por um empréstimo bancário. Devemos considerar o triplo impasse em que o déspota confinou seu país. A nossa estaria sujeita à mesma clandestinidade de uma camarilha centrada em seus próprios interesses, que sempre procedeu por expurgos para manter o controle de sua pequena empresa política familiar. Estaria fadada ao mesmo isolamento internacional que a reaproximação com governos populistas, sugerida pela Sra. Le Pen não compensaria por muito tempo. Basta notar a rapidez com que a Polônia acaba de se afastar da Hungria, após a agressão da Ucrânia, para se convencer de que esses conglomerados de egoísmo nacional nunca permanecem coerentes. Finalmente, nosso país estaria exposto aos mesmos fermentos de ódio e violência contra setores inteiros de sua população.
Obviamente, não se trata, aqui, de deixar crer que todos os eleitores de Marine Le Pen estão conscientes dos perigos dissimulados por trás da postura protecionista do candidato. Mas esse não pode ser o caso de opositores de longa data da extrema direita, experientes pela história e pela natureza imutável do RN. É por isso que, ao contrário de muitos líderes de esquerda que formularam instruções inequívocas, Jean-Luc Mélenchon errou muito ao declarar recentemente que era “bastante secundário” saber quem, o Sr. Macron ou Le Pen, estaria à frente de um executivo no qual deseja se impor como primeiro-ministro. De um candidato que havia excluído a votação do RN na noite de sua eliminação no primeiro turno, essa banalização não é bem-vinda. Ainda que o número de votos que recaiu sobre ele ultrapasse em muito o núcleo histórico dos “rebeldes”, essa erosão do reflexo republicano, que equivale a descarregar nos outros a responsabilidade de evitar o pior, também é preocupante quanto arriscada.
No entanto, a esquerda está longe de ter o monopólio dessa relutância. À direita, muitos eleitos também deixaram claro que passariam com prazer este segundo turno, e todos os esclarecimentos necessários, para melhor se posicionarem na próxima batalha, as eleições legislativas. Este cálculo, voltado para o futuro, é tanto mais culposo quanto prolonga a irresponsabilidade da frente, estes longos meses em que a extrema direita, a de Eric Zemmour em primeiro lugar, não deixou de beneficiar de todas estas atenções que contribuíram para colocando Marine Le Pen na situação sem precedentes em que se encontra às vésperas deste segundo turno. Essa complacência passou dos canais de televisão para os grandes jornais, e às vezes até da pena de intelectuais cujas ambiguidades apontamos com razão.
Continua ainda hoje na forma de um desafio ao termo “extrema direita” aplicado a uma candidata cujo programa, no entanto, demonstra que ela não mudou os fundamentos de seu partido. Instalou-se assim um espantoso mundo invertido, onde Marine Le Pen pode pretender, contra toda a probabilidade, ser a candidata da “concórdia” e da “fraternidade nacional” , aquela que pode “restituir a França” … Onde o trabalho de investigação e aprofundamento, o resgate da história, a perspectiva de comparações internacionais, qualificado como “preguiça intelectual”, recebem menos consideração do que comentários em loop na superfície das coisas. Nesse mundo invertido, alguns intelectuais já não fazem o papel de batedores de debate ou pioneiros de ideias há muito tempo, contentam-se em carregar o que apresentam como a voz de um povo que não conhecem.
Brutalidade
Para a direita clássica, a sanção para essa complacência no discurso extremista tem sido severa. Resultou no desaparecimento quase completo de um eleitorado que se dividiu, no primeiro turno, entre os votos de Macron, Zemmour e Le Pen. Incapaz de defender sua visão de sociedade, o lado político que pensava finalmente ter vencido a batalha de ideias viu-se reduzido, no segundo turno, a ver os dois finalistas cortejarem os eleitores de Mélenchon.
“Quem ganha as eleições presidenciais é quem impõe a sua pergunta, para a qual tem a resposta” , declarou este inverno, o candidato da Reconquista!. Obviamente, Eric Zemmour não tinha a pergunta certa, assim como Marine Le Pen não tinha a resposta certa. Seções inteiras do programa da candidata tentam resolver as questões sociais que ela apresenta como sua nova preocupação por meio da receita imutável de seu partido: a exclusão das populações imigrantes.
Para dar apenas um exemplo, no domínio da habitação, o candidato pretende resolver a carência de prestação social rescindindo o arrendamento de mais de 500.000 famílias de inquilinos estrangeiros, legalmente presentes em França. Uma de duas coisas: ou esta medida é inaplicável, e Marine Le Pen não resolverá nenhum dos problemas que afirma ter em consideração, habitação social não mais do que qualquer outra. Ou é implementado com uma brutalidade incompatível com os valores elementares da República. Esse apartheid de fato aumentaria a violação das instituições e o caos na economia e na sociedade.Diante da possibilidade de atos tão vergonhosos, é importante que todos os democratas estabeleçam uma hierarquia clara dos perigos que ameaçam nosso país e que se mobilizem para que a candidatura de Marine Le Pen seja rejeitada com a maior lacuna possível. Esse é o único cálculo que conta às vésperas deste segundo turno para, pelo menos, evitar que a extrema direita derrote o país.
Você precisa fazer login para comentar.